Nostalgia à mesa
18 agosto
2009 |por Carlos Cabral |4 Comentários
Este texto é sobre uma receita de bacalhau que
marcou época e me deu uma enorme coleção de amigos. Fui proprietário, em
sociedade, da Casa Cabral, uma bonita loja nos Jardins, bairro de São Paulo. O
lugar oferecia 1.000 rótulos de vinhos, entre eles 187 do Porto, além de uma
infinidade de comidas importadas e o melhor da delicatessen brasileira da
época, o que incluía um bacalhau que fez história.
No piso superior da loja havia uma sala destinada
aos cursos de vinho que ministrei continuamente por três anos. O espaço tinha
cinco mesas e 20 cadeiras. Certo dia, resolvemos montar ali uma sala de
refeições para servir apenas bacalhau, somente dois dias por semana, e só no
almoço. No cardápio, três pratos: bacalhau nas natas, bacalhau ao vinho do
Porto (receita de José Antonio Ramos Pinto Rosas) e o bacalhau assado com
batatas ao murro – uma versão levemente modificada por mim do célebre bacalhau
à lagareira.
Um trio de ouro de portugueses fez a vez de pilotos
de provas dos pratos: os confrades Armando Reis e Emídio Dias de Carvalho e o
todo-poderoso senhor dos hipermercados Eldorado, Adelino Veríssimo. Coitados,
tiveram de comer um bacalhau salgadíssimo – eu ainda não havia acertado a mão
na arte de de molhar o peixe. Após dois meses de testes, só o assado com batatas
ao murro ficou no cardápio até o fechamento da Casa Cabral, a 30 de outubro de
1995.
Uma grande posta de bacalhau (Porto Imperial 8/10),
muito branco, sem a pele, empanada na farinha de rosca com pó de alho, que
recebia um banho de azeite bem quente antes de ir por 10 minutos ao forno. Esse
foi por dois anos a alegria de muita gente. E graças a esses admiradores, a
lenda tomou forma.
O grande criador de vinhos da Bairrada, Luis Pato,
afirma até hoje nunca ter provado nada igual. Alguns clientes que ficaram
assíduos saboreadores desse prato solicitaram que eu o fizesse em suas casas em
dias de festa familiar.
E lá íamos, Leda e eu, para a agradável missão. O
artista plástico Emanuel Araújo, o banqueiro Toninho Herman, o empresário
Emílio Odebrecht, o investidor Gilberto Bomeny, o nobre italiano Ângelo Granito
di Belmonte, o chef Sergio Arno, os amigos Lina e Candeias, e o pessoal da
banda Titãs estão entre os tantos que prestigiavam com assiduidade o pequeno
restaurante. Até Paul Pontalier, enólogo-chefe do Château Margaux, provou desse
bacalhau.
O mesmo peixe preparado para o restaurante era
vendido limpo e sem pele na loja. A dupla Juscelino e Edvaldo, com dois
alicates utilizados para cirurgias ortopédicas (peças de superinox que não
enferrujam em contato com o sal), retiravam as espinhas maiores do peixe, sem
lhe rasgar a carne, embalavam com cuidado e exibiam suas obras de arte na
geladeira no fundo da loja. E para aqueles que compravam o bacalhau dessa
forma, passávamos a receita com muito carinho – era nossa maior propaganda.
E não posso esquecer os vinhos que a loja fornecia
ao preço da prateleira. Lançamos e ajudamos muito no sucesso do verde
Trajadura, da Quinta da Aveleda, e do tinto Esporão Reserva. Grandes
experiências com vinhos foram realizadas com esse prato: degustamos de Barca
Velha a Sauvignon Blanc da Nova Zelândia – uma raridade na época. A maior
ousadia foi acompanhar o prato, a pedido de um senhor mexicano, com Champagne
Veuve Cliquot Brut!
Por diversas vezes, na Quaresma, veículos de
comunicação nos entrevistaram sobre o preparo do peixe. Lembro-me de uma equipe
de filmagem comer uma baciada de bolinhos de bacalhau enquanto gravava nosso
trabalho.
Até hoje cruzo com pessoas que pedem para voltar a
preparar o prato e servi-lo. Foi um tempo bom aquele, mas o melhor foram as
amizades que dele brotaram e que até hoje se mantêm.
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